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Moïse Kabagambe e a democracia escravista

por Carlos Melo

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“A cena mais dramática da condenação ao pó é o linchamento, que representa uma forma grandiosa, grotesca e exibicionista da crueldade racista. Ele acontece não por trás dos muros de contenção de uma prisão, mas no espaço público. [...] Enquanto técnica do poder racista, o ritual executório tem por objetivo semear o terror no espírito de suas vítimas e reavivar as pulsões mortíferas que formam o alicerce da supremacia branca.” - Achille Mbembe

O jovem congolês Moïse Kabagambe, foi espancado até a morte após cobrar o salário, fruto de seu trabalho. A brutalidade cometida contra Moïse é resultado de uma estrutura racista, impregnada de aspectos coloniais. Nessa estrutura, os corpos racializados não têm direito a ter direitos.

 

A estrutura social brasileira pode e deve ser tratada como uma “democracia escravista”. Para chegar a essa afirmação, basta observar alguns aspectos da sociedade brasileira. Podemos começar observando os dados mais recentes sobre o trabalho escravo.

 

No período de 1º de janeiro a 9 de dezembro de 2021, foram resgatadas 1.636 pessoas do trabalho escravo, o dobro do ano de 2020 e o maior registro no país desde 2013. Além do trabalho escravo, podemos observar também o genocídio cometido contra povos negros e indígenas.

 

O “Atlas da Violência”, publicado em 2020, revelou que o assassinato de pessoas negras cresceram 11,5% em 10 anos. Apenas no ano de 2018, 30.873 jovens na faixa etária entre 15 e 29 anos foram mortos. A partir dos dados analisados, o estudo aponta que pessoas negras têm mais que o dobro de chance de serem assassinadas no Brasil.

 

No que se refere aos assassinatos cometidos contra crianças e adolescentes, um estudo do Fórum de Segurança Pública em parceria com a Unicef revelou que, em média, são mortas 7 mil crianças por ano no Brasil. Desse total, 80% são crianças negras.

 

Poderíamos apresentar diversos outros dados, mas pondero que os dados supracitados conseguem justificar a afirmação de que vivemos em uma democracia escravista. O filósofo Achille Mbembe afirma que a democracia escravista se caracteriza por uma determinada bifurcação. No seio dessa democracia vivem duas ordens:

“uma comunidade dos semelhantes, regida, ao menos teoricamente, pela lei da igualdade, e uma categoria de dissemelhantes, ou de sem-partes, [...]. A priori, os sem partes não tinham direito de ter direitos. Eram regidos pela lei da desigualdade. Essa desigualdade e a lei que a instituía e embasava estava assentada no preconceito racial. Tanto o próprio preconceito quanto a lei que o fundamentava permitiam manter uma distância quase intransponível entre a comunidade de semelhantes e os outros.”

Essa estrutura de desigualdades, fomentada pelo preconceito, definem que apenas aquelas/es integrantes da comunidade dos semelhantes, podem ocupar os lugares de poder. Lógico que dentro de uma “democracia”, essa regra é imposta de forma sútil. Abdias Nascimento afirma que além dos órgão do poder - o governo, as leis, o capital, as forças armadas, a polícia - as classes dominantes brancas têm à sua disposição poderosos implementos de controle social e cultural.

De acordo com o intelectual, “o sistema educativo, as várias formas de comunicação de massas - a imprensa, o rádio, a televisão - e a produção literária, estão a serviço dos interesses das classes no poder e são usados para destruir o negro como pessoa e como criador e condutor de uma cultura própria. Restringindo sua mobilidade vertical na sociedade como um grupo”.

 

Sobre essa questão, podemos citar ainda Alexis de Tocqueville, que afirma que na democracia escravista o “oprimido pode se queixar, mas só encontrará brancos entre os juízes. A lei, no entanto, abre-lhe o banco de jurados, mas o preconceito afasta-o dele. Seu filho é excluído da escola em que vai se instruir o descendente dos europeus. Permite-se que o negro implore ao mesmo Deus dos brancos, mas não no mesmo altar”.

 

Em suma, “na democracia escravista, os dissemelhantes não podem reclamar a posse de um só pedaço de terra”. Por tanto, pondero que não há conciliação possível. Se faz necessário a destruição e liquidação da ordem estabelecida. Ou é isso, ou continuaremos agonizando e banhando as ruas de sangue.

 

Moïse Kabagambe era um jovem congolês que chegou ao Brasil com sua família em busca de viver dias menos dolorosos. A história de Moïse, me fez pensar em um trecho da obra “Por uma revolução africana”, na qual Fanon escreve:

“O passado lhe é extremamente dolorido. O que ele espera é nunca mais sofrer, nunca mais se ver frente a frente com o passado.”

Infelizmente, o que o jovem Moïse e sua família encontraram, foi a continuidade da violência colonial da qual ele e sua família pretendiam fugir. “O racismo, como já vimos, não passa de um elemento de um todo maior: o da opressão sistematizada de um povo. Portanto, a justiça só virá com a decomposição do sistema vigente. Enquanto os colonos estiveram nas posições de poder, o massacre contra nossos corpos, culturas e mentes permanecerá.

“Nosso erro, o erro dos africanos, é ter esquecido que o inimigo jamais recua de maneira sincera. Jamais compreende. Ele capitula, mas não se converte.”  Frantz Omar Fanon

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Carlos Melo

Nascido em Fortaleza (CE), em 20 de Março de 1988, Carlos Melo é pesquisador de Filosofia Ubuntu e De(s)colonialidades; Escritor; Professor; Produtor Cultural; Idealizador do Projeto Descolonizando Pensamentos; Idealizador do Grupo de Estudos Rotas de Fuga; Idealizador e Editor da Pluriverso Edições Independentes; Estudante de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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