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"A terra é o meu
quilombo,
meu espaço é o meu quilombo.
- Beatriz Nascimento
eu estou, onde eu estou,
eu sou"
Onde eu estou,
Para iniciarmos nossa reflexão, é importante destacar que muito antes de surgirem os primeiros quilombos em território brasileiro, os povos jagas-imbangalas utilizavam o termo Kilombo para nomear um processo de iniciação de jovens que eram preparados não só para a guerra, como também para empreender e formar territórios. Sobre isto, a historiadora, professora e poeta Beatriz Nascimento, argumentou que foi baseado neste processo que:
“o Kilombo se transfere para a América. Através desses indivíduos, em todo o território americano, foram fundados, a partir do século XVI, os estabelecimentos quilombos (Brasil e Cone Sul), cimarróns (ao norte da América do Sul), apalancados (em Cuba e Haiti)
e maroons (nas demais ilhas do Caribe).”
No Brasil, os quilombos surgiram como núcleos de populações livres do domínio colonial, até que no final do século XVI, no território da então Capitania de Pernambuco, se estruturou “Ngola Djanga, que os portugueses chamavam de Angola Pequena e hoje conhecemos como Quilombo dos Palmares”. Beatriz Nascimento pondera que talvez “seja este quilombo o único a permitir correlação entre Kilombo, instituição angolana, e o quilombo no Brasil colonial”.
Durante suas pesquisas, Beatriz Nascimento observou que, em grande medida, os quilombos eram organizados com base em uma estrutura ideológica na qual a fuga era compreendida como uma reação ao colonialismo. A fuga seria, portanto, o ato primeiro das pessoas escravizadas que não se reconheciam enquanto propriedade de outrem. Deste ato, desenvolveu-se um paradigma que estimulou sua passagem para outros modelos de visão de mundo.
Foi a partir deste paradigma, que o quilombo se estabeleceu como “instrumento ideológico”, passando a ser um dos alicerces da resistência cultural africana. De modo que as comunidades quilombolas eram alicerçadas nos princípios culturais africanos, e assim, estabeleciam suas próprias estruturas sociais.
Devido sua resistência ao poder colonial, o fenômeno do quilombo representou um perigo à ordem estabelecida. Por isso, foi criminalizado e sofreu constantes ataques desde sua origem. Após o período colonial, a criminalização e os ataques persistiram através de leis que tinham como objetivo o branqueamento da sociedade brasileira. Portanto, a intenção era eliminar qualquer vestígio de pessoas e culturas não-europeias.
Sobre esta questão, podemos citar dois exemplos. Um deles é a declaração feita pelo político e historiador João Pandiá Calógeras, em 1930:
O segundo exemplo é o discurso de João Batista de Lacerda durante o Primeiro Congresso Universal de Raças, realizado em Londres, em 1911. Na ocasião ele previa que, até o ano de 2012, o Brasil estaria livre do negro e do mestiço:
“A mancha negra tende a desaparecer num tempo relativamente curto em virtude do influxo da imigração branca em que a herança de Cam se dissolve.”
Poderíamos demonstrar ainda muitos outros exemplos, mas acreditamos que os supracitados são suficientes. O fato é que a intenção de branqueamento da sociedade brasileira resultou na criminalização e consequentemente em perseguições e violências cometidas contra negros, indígenas e suas culturas. Dentre outras coisas, isto resultou no apagamento das histórias e identidades próprias desses povos. Consequentemente, o fenômeno do quilombo foi caindo no esquecimento, tanto na literatura oficial e histórica quanto na memória oral.
Sobre isto, Beatriz Nascimento relatou que:
“Em virtude desse processo de redução étnica, é lógico esperar que no curso de mais um século os métis tenham desaparecido do Brasil. Isto coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio.”
“Por muito tempo, durante os anos de pesquisa sobre quilombos no Brasil, o que mais me intrigava era a tendência que esse fenômeno tinha para cair no esquecimento, [...]. Entretanto, ocorria um paradoxo que, constituído de lembranças esporadicamente recorrentes, o fazia irromper de tempos em tempos na memória nacional. Isso acontecia justamente em momentos
de crise profunda das relações políticas [...]”
Não por acaso, o fenômeno do quilombo ressurge na década de 70 como símbolo da luta contra o colonialismo cultural e a persistência do racismo na estrutura social brasileira (NASCIMENTO, 2021). De acordo com Beatriz Nascimento, o quilombo foi o “instrumento ideológico” que estimulou o resgate da identidade, história e cultura africana, e assim, embasou a criação do movimento negro no Brasil.
“Sob sua efígie, sua imagem recalcada que estava em cada um de nós, ele inventou um movimento. Fazendo-nos lembrar hoje que o quilombo é o espaço que ocupamos. Quilombo somos nós. Somos parte do Brasil. Esse Brasil democrático, revolucionário, que ajudamos a construir, é assim que o queremos.
Contra todas as forças conservadoras. Quilombo hoje é o momento de resgate histórico. Está presente em nós, entre nós, no mundo.”
A sociedade brasileira passa por mais um momento de crise profunda das relações políticas. Não por acaso, o fenômeno do quilombo ressurge enquanto “instrumento ideológico” que fortalece nossa luta contra as forças conservadoras e a favor de uma estrutura social verdadeiramente democrática.
Fonte bibliográfica:
GERBER, Raquel; NASCIMENTO, Beatriz. Ôrí, 1989.
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.
NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Alex Ratts, (org.). Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
carlos melo
Nascido em Fortaleza (CE). É poeta; produtor cultural; pesquisador de Filosofia Ubuntu, Decolonialidades e pensamento contra-colonial; idealizador do Projeto Descolonizando Pensamentos; Idealizador do Grupo de Estudos Rotas de Fuga; idealizador do Coletivo Reconecta; membro fundador do Sarau da B1; pesquisador do Rekhet - Núcleo de Pesquisa em Filosofia Antiga Africana - Geru Maa - UFF; produtor cultural; estudante do curso de licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).